
O século XV é reconhecidamente a antecâmara das profundas alterações na arquitectura e urbanismo que se fizeram sentir no século XVI. À cidade ou vila medieval, de ruas estreitas, traço sinuoso, edifícios de alçados descontinuados, com poucas evoluções no domínio da higiene ou salubridade pública, sucede-se uma preocupação crescente com a regulamentação do espaço urbano, com a qualidade de vida, principalmente nos locais visitados pela corte. Óbidos foi, precisamente, local de muitas visitas régias no período medieval. O seu castelo incluía o paço do rei e o paço da rainha, justificando assim a existência de um paceiro. Essa ligação à família régia demonstra-se, por exemplo, pela celebração dos esponsais do infante D. Afonso, futuro D. Afonso V, então com dez anos, com D. Isabel, de oito anos, na Igreja de Santa Maria, em 15 de Agosto de 1441. Os cuidados com a higiene pública acompanham o exemplo da Capital, onde os vizinhos foram forçados a varrer a rua, diante da sua porta, da Primavera ao Outono, obrigação que se estende aos cortesãos a partir de 1499.
Óbidos, nos finais do séc. XV, por decisão real, possuía um serviço de limpeza de ruas. A rainha D. Leonor terá incumbido vinte criminosos, que habitavam nas Caldas da Rainha, para procederem à limpeza pública da vila todos os sábados (Câmara T, 1986, p. 35). Um outro aspecto significativo do pioneirismo e qualidade do urbanismo da vila prende-se com a pavimentação das ruas, tarefa na qual Óbidos terá sido das primeiras urbes europeias a resolver a questão. Através de uma carta de D. Filipa ficamos com a referência que a responsabilidade da manutenção dos pavimentos também cabia aos cavaleiros. De alguma forma, trata-se da implementação à época do princípio do utilizador/ pagador (Câmara T, 1986, p. 27). No caso de Óbidos, a preocupação com o pavimento estava ligada à necessidade das melhorias de circulação, à melhoria da salubridade pública, como forma de vencer uma orografia agreste e também porque esta era uma das vilas das rainhas.
A intervenção régia para a pavimentação de ruas é um facto, nomeadamente, em Lisboa. No dealbar do século XVI, a vila adivinhava as grandes transformações que a iriam alterar radicalmente. Um conjunto de circunstâncias proporcionou uma série de intervenções e construções que enriqueceram a rede de equipamentos públicos da vila. A ocorrência de catástrofes naturais, como sismos, a mudança de mentalidades que se opera na relação entre povo e monarcas, tudo se relaciona e prepara o quadro que apresentamos. O início do século é um período que em Portugal se confunde com a figura marcante de D. Manuel. No caso concreto de Óbidos, D. Manuel é referido como sendo responsável por uma série de obras nas muralhas e, principalmente, pela reconversão do castelo em paço dos alcaides. Para além disso, a este rei se deve a concessão de um novo foral e a provável instituição dos antigos Paços do Concelho, no edifício da Praça de Santa Maria. A sua política de valorização do espaço público/municipal aplicada em diversos locais do País, através do alargamento de ruas ou praças por questões estéticas e funcionais, teve eco em Óbidos, onde também existe registo de obras de alargamento da Praça de Santa Maria, como fica demonstrado por documento de 1501. Esta acção do monarca era complementada com as obras de assistência de D. Leonor a quem se deve a criação da Santa Casa da Misericórdia e o lançamento de uma campanha de obras na igreja de Santa Maria. A rainha D. Leonor deixa como herança uma relação profunda com a vila pois a ela se deve a fundação do Hospital Termal das Caldas da Rainha, em 1485, à época, bem no interior do termo de Óbidos. Para além disso, terá sido aqui que a rainha chorou a morte do seu filho, príncipe D. Afonso.
Depois da acção da rainha D. Leonor, uma outra rainha, D. Catarina de Áustria, mulher de D. João III, assume um papel preponderante na forma como a vila será projectada e construída. Os sucessivos terramotos que assolaram o País neste século repercutiram-se em Óbidos, principalmente o de 1531. A própria configuração da Rua Direita terá sido alterada nesta data, algo que nos é revelado pela descoberta de uma série de portais góticos no interior de edifícios contíguos. Num contexto de alteração de mentalidade régia, onde o conceito renascentista de preocupação do príncipe com a população assume preponderância, D. Catarina cria um conjunto de infraestruturas emblemáticas como o chafariz de Santa Maria e o aqueduto, contratualizado com a população da vila e iniciado em 1573.
O abastecimento público de água a Óbidos passa a estar comparado com os melhores exemplos nacionais e bem à frente daquela que era a realidade da Capital. O término do aqueduto ocorre no espaço público por excelência da vila. Um longo processo de conquista de espaço a edifícios intrusos permitiu à Praça de Santa Maria a configuração espaçosa e plana que possui num espaço muralhado e de relevo acentuado, gerando uma interessante simbiose entre as contingências do espaço e terreno e a tratadística italiana que fazia escola no resto da Europa. A demonstrá-lo está a utilização de um chafariz com espaldar adossado ao muro de contenção da Rua Direita, libertando o espaço central da praça e fazendo contraponto com o pórtico da igreja de Santa Maria, também objecto de obras patrocinadas por D. Catarina. A delimitação da praça passa a ser feita pelo telheiro, estrutura já referenciada em 1430, situado na então designada “Praça Nova” e no lado oposto pelo solar de Santa Maria, à época, com a fachada principal virada para a praça.
Em jeito de síntese, este edifício assenta bem numa nova tipologia construtiva que se desenvolve no século XVI e se propaga nos seguintes, em virtude da necessidade de reinvenção de uma cidade medieval marcada pela falta de uniformidade estética e funcional. Os anteriores edifícios em materiais perenes e frágeis a catástrofes, como sismos ou incêndios, são substituídos por construções de acordo com o programa da época: “alvenaria de pedra e/ou tijolo, [o edifício] é plano, alinhado com os confrontantes e, por imposição regulamentar, sem saliências que vão além de palmo e meio incluindo o beirado. Os vãos fechados por caixilharia de madeira, são guarnecidos com cantaria lisa de textura a “pico fino” com orla que contrasta na superfície rebocada nem sempre caiada, pelo que o branco e os tons naturais da argamassa predominam” (Rossa W, 1995, pp. 2614). O posteriormente denominado “Estilo-Chão” está presente em Óbidos com grande predominância, sendo reutilizado depois do terramoto de 1755, responsável por danos consideráveis em edifícios habitacionais, mas também nas igrejas de São Tiago e São Pedro. A uniformidade estética foi atingida com edifícios de alvenaria, disposição proporcional de vãos, rebocos caiados com lambris coloridos, fazendose a distinção das casas de famílias mais abastadas, não tanto pela dimensão, mas através do recurso a espartanos esquemas decorativos como cunhais de pedra em aparelho rusticado.
Como refere Teresa Câmara (p. 107), citando Carlos Azevedo: “a casa nobre não é representada pelo grande palácio, mais sim pela despretensiosa da província, a casa simples e castiça”. Esta característica deve muito ao facto de a nobreza que vivia na vila estar ligada ao funcionalismo das instituições régias e municipais. Óbidos assume e revela um conjunto de características arquitectónicas e urbanísticas que reflectem um conjunto de características portuguesas visíveis por exemplo nas semelhanças da Praça de Santa Maria com a Praça das Janelas Verdes ou a Praça de S. Luís do Maranhão, no Brasil. Esta é pelo menos a opinião aventada pelo arquitecto José Manuel Fernandes.
A harmonia como a vila se desenvolve no perfil do espaço, sem que, contudo, deixe de ter cor, a forma como se criaram espaços abertos de privacidade familiar num local muralhado, a democraticidade das suas fachadas e o conjunto de equipamentos que sustentavam a vila tornam-na num precioso contributo para o entendimento da História do Urbanismo em Portugal. A vila lega-nos, através do seu ambiente histórico, a forma como populações e poder lidaram com contingências diversas, conquistas e instalação de novas culturas, catástrofes e os seus efeitos, alterações do ecossistema em que se insere e na forma como procurou gerir os recursos naturais disponíveis.
O Ambiente Histórico de Óbidos reflecte ainda a profunda estagnação do século XIX com as mudanças trazidas pelo Liberalismo. As profundas alterações na estrutura administrativa do País reflectiram-se em Óbidos com a extinção da Casa das Rainhas e um conjunto de pequena nobreza incapaz de inverter o cenário de perda de centralidade local. O século XX assume este legado, encarando o turismo como o fundamento da estratégia de desenvolvimento da vila. Reformas nas muralhas e a instalação do Museu Municipal e da Pousada no castelo, em meados do século, lançaram os alicerces de uma vertente que hoje é cada vez mais valorizada.
- Alinhamento da Rua Direita
- Torre do Facho
- Janelas Manuelinas
- Telheiro da Praça de Sta. Maria
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