Na sua famosa pinturaLa Mémoire(1948), René Magritte retratou a cabeça de uma estátua feminina a sangrar de uma têmpora. A estranheza provocada pela associação destes dois elementos que pertencem a dois contextos diferentes — a vulnerabilidade do corpo humano e a intemporalidade da escultura — introduzem-nos às raizes da reflexão desta nova série de trabalhos de Gonçalo Preto.
Fragmentobaseia-se na justaposição de imagens que retratam partes do corpo humano e fragmentos de esculturas antigas, ambas investigadas pelo artista, com o mesmo olhar analítico e transpostas para o papel através de uma descrição realista e detalhada.
O ponto de partida deAnamnese, o retrato de um rapaz com a cara desfigurada, imagem que data da Primeira Guerra Mundial, surgiu da investigação do trabalho do britânico Francis Derwent Wood e da americana Anna Coleman Ladd, dois escultores que puseram a sua arte ao serviço dos soldados feridos durante a guerra. Wood abriu a sua “Tin Noses Shop” em Londres, enquanto Ladd fundou o “Studio for Portrait Masks” em Paris: em ambos os laboratórios se dedicavam à construção de máscaras para serem usadas por pessoas com faces desfiguradas, tentando devolver aos soldados os seus rostos. Semelhante ao processo de restauração da escultura, os artistas fizeram moldes de gesso das caras mutiladas e reconstruíram-nas baseando-se em fotografias anteriores à lesão, a fim de restaurar as suas características originais.
Anamneseestá frente a frente comApogeo, o desenho de uma máscara antiga cuja totalidade foi comprometida por fraturas e outros danos, e da qual o aspeto original foi irremediavelmente perdido. Se o efeito do rosto humano mutilado é perturbador, porque o observador instintivamente cria empatia com o corpo humano, com as suas fraturas e mutilações, a máscara parece familiar: sujeita à ação do tempo e acidentalmente partida, esta adquire uma dimensão humana.
O dípticoUntitledbaseia-se na mesma relação: exposto numa caixa de forma horizontal, convida o espectador a inclinar-se e a vê-lo de perto, a imagem de um acumular de estátuas e bustos antigos fragmentados é justaposta com o desenho perturbador de corpos desarticulados empilhados. Ambas as ruínas de guerra, consequências de uma violência intemporal, evocam ao mesmo tempo episódios de recente destruição brutal em antigos lugares arqueológicos, como Nimrud e Palmyra.
EmSolstício, a escultura e o corpo misturam-se no desenho de uma mão de bronze em que a frieza do metal se funde com o calor e a tensão do gesto, enquanto no díptico de pinturasNo fio da navalhaa mesma imagem de uma orelha humana ferida sujeita a um desaparecimento através de uma pátina parece visualizar o nosso processo de adaptação a imagens perturbadoras.
EmFragmento, corpos partidos e esculturas feridas enfrentam- e num diálogo silencioso, ambos sujeitos à passagem do tempo e testemunhas de um trauma.
Local: Galeria Madragoa