O céu dos oblíquos é onde Macabeia, protagonista do último romance de Clarice Lispector, A Hora da Estrela(1977), certamente ganharia lugar, um dia – no paraíso reservado para os desajustados – de acordo com as palavras fictícias do narrador masculino. Em grande parte invisível para a sociedade, Macabeia parece pouco consciente da sua própria existência.
– E quando acordou? Quando acordou, já não conhecia a sua própria identidade. Só mais tarde ela refletiu com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só então ela se vestiu e passou o resto do dia passivamente representando o papel de ser.
O corpo humano – o corpo feminino – é o protagonista dos vídeos apresentados na exposição. Todas as obras compartilham uma atitude performativa em que o corpo, ao invés de se vestir para reconquistar ou reconhecer a sua própria identidade, fica nu, literal ou metaforicamente, para expor as convenções pelas quais ainda é muitas vezes interpretada, mesmo mostrando suas fraquezas.
O vídeo uNgenzelephantsi (2014) de Buhlebezwe Siwani começa com o corpo do artista inteiramente coberto com penas de galinha branca que lentamente arranca da sua pele. O vídeo é baseado em dicotomias: o corpo é dividido em dois, a parte superior e inferior, simultaneamente, mostrado em duas telas justapostas; a ação dolorosa de rasgar as penas suavizada pela queda das plumas que ficam aos pés da artista, cobrindo-as gradualmente; o contraste entre a pele preta que emerge das penas brancas, levando a atenção aos valores do bem e do mal geralmente associados com cores brancas e pretas. Através deste striptease poderoso ainda desconfortável, o corpo é revelado para ser o terreno crítico para uma reflexão sobre raça e género.
No filme Untitled(2016) de Joanna Piotrowska, uma jovem de pé diante da câmera aponta com o dedo para distintas partes de seu corpo: os movimentos lentos traçam um mapa misterioso, convidando o observador a uma exploração corporal que é simultaneamente sensual e tensa. Essa coreografia simples é uma promulgação corporal de diagramas que visam os “pontos fracos” do corpo humano, tirados de manuais de autodefesa, que ilustram como as vítimas se podem defender batendo nesses pontos.
A premissa da violência é sublimada pelo gesto calmo da performer que, ao expor sua própria fragilidade, questiona os papéis de vítima e agressor. Untitled (2016) mostra o close-up de um braço esquerdo e mão continuamente acariciada pela mão direita oposta. Gestos de toque em si próprio, considerados pelos psicólogos como uma terapia para combater a ansiedade e a solidão, expressam no vídeo a estranheza do corpo objetivado.
Com sua atitude paradoxal,Tarefa I(1982) de Letícia Parente lembra a máxima surrealista de “encontro casual de uma máquina de costura e um guarda-chuva em uma mesa de operações”. Nesse caso, é a própria artista que, toda vestida, deita-se na tábua de engomar e é cuidadosamente passada à mão pelo caseiro, que persegue a sua tarefa como se não houvesse nada de estranho acontecendo.
A ação, expressa com ironia e através de um “aplanamento” físico, evoca os estereótipos chatos através dos quais as mulheres têm sido identificadas há muito tempo, reduzidas a tarefas domésticas que no vídeo são enfatizadas pela presença das mãos da empregada.
A objetivação e assimilação do próprio corpo da artista a uma ação relegada a um papel feminino mostra o absurdo da suposição, enquanto a incapacidade de esticar o vestido, o fracasso de fazê-lo aderir perfeitamente ao corpo revela a impossível coincidência da mulher com a sua própria aparência.