Nem só de linho se faz um santo sudário, ele também se faz de pedras. Uma muralha desta tem resto de pele de gente que a chuva não lavou, um resto fossilizado nas nódoas que, para mim, não é limo. Se a audição fosse aguda, era deitar-se sobre o chão e ouvir os passos, um mais apressado avisando que era melhor fechar a porta da vila. A muralha sempre recorda que há os que estão dentro e os que estão fora. Sobe-se a muralha sem ter onde ancorar as mãos, há o aviso para que crianças sejam supervisionadas, mas ninguém supervisiona a senhora corcunda que sobe amparando-se na única parede possível, justamente o muro que é visto pelo forasteiro da idade dos séculos, ao longe, pensando em como entrar na vila sem que o avistem.
A queda é premente, mas ninguém cai, resolvo contornar a muralha onde encontro um banco à sombra ao lado de uma berlinda de madeira que, fosse vista na encenação medieval, teríamos ali a punição de um mentiroso cuja mãe o estaria defendendo das ofensas, com a sola seca dos pés e o avental húmido. Mas no Folio, a berlinda exposta é cena à espera de um gesto mental que a torne uma narrativa, condição inalienável da qual já estou usufruindo. O que está à luz do dia não é tão visível quanto se pensa, as coisas escondem-se ainda mais sob um brilho que não é delas, para nossa sorte, a leitura é forma de ver com ou sem luz. A leitura dos livros e do mundo, da literatura e da muralha, esse gesto verbal que nos deixa saber que a mente não gera apenas hipóteses e contas, ultrapassando o que ela mesma capta pelos sentidos, é o contacto mais íntimo que se pode ter consigo e com o outro. Neste campo, a ficção é a que melhor faz possível todos os possíveis. Cada livro e cada muralha encerram uma narrativa, na leitura das pedras e das palavras o mundo revela seu moinho.
Escritora brasileira
Fonte: DN Opinião