Jorge Serrazina, de 63 anos, natural de Óbidos, viveu uma aventura improvável e difícil no Tor des Glaciers, a mais longa prova de trail em alta montanha do mundo. Com 450 quilómetros e 37 mil metros de desnível positivo, a prova realizou-se entre 6 a 14 de Setembro, em Valle d’Aosta, nos Alpes italianos.
Os participantes enfrentaram tempestades de neve e temperaturas que chegaram aos 20 graus negativos, superando várias montanhas com mais de 3.000 metros de altitude.
“Desta vez fui para o Tor des Glaciers, muito mais duro, sem marcação e com navegação por GPS, numa via diferente, mais selvagem e mais alta. Tem zonas com más condições e com glaciares. Foi aberta a apenas 100 candidatos. Eu e o Diogo Simão fomos os únicos portugueses”, explicou o atleta e engenheiro agrónomo.
Jorge Serrazina começou a treinar para a prova em Fevereiro. Adaptou a alimentação, planeou a logística e o equipamento, para sobreviver em alta montanha, onde viria a apanhar 12º celsius negativos, chuva e neve.
Na madrugada de 5 de Setembro aterrou em Milão, Itália, mas a bagagem de porão perdeu-se. “Fiquei sem nada. Cheio de mágoa, partilhei o que me estava a acontecer no Facebook e poucas horas depois recebi mensagens e telefonemas de amigos a tentarem ajudar”, recorda.
No entanto, e através de uma ‘onda’ de solidariedade, Serrazina apresentou-se na partida em Courmayeur, no dia seguinte, com equipamento emprestado de um grupo de franceses, amigos portugueses e de um luso-francês. Os materiais foram adquiridos duas horas antes da prova.
“Foi impressionante, emocionante. Sou um bocado casmurro e, com aquela manifestação de solidariedade, a motivação ficou reforçada. Mas falhou-me uma coisa extremamente importante, a alimentação. Parti com duas barras e uns frutos secos e passei fome, porque nos primeiros refúgios a comida era à base de bolachas, chá e sopa”, assinalou.
Além disso, na primeira noite perdeu a ponta de um dos bastões, “fundamentais numa prova destas com um desnível brutal”, e viu-se obrigado a recorrer a “um pau, nos 60 quilómetros seguintes, para subir duas vezes acima dos 3.000 metros, em trilhos técnicos e extremamente perigosos”.
“Parece que tudo estava destinado a correr mal, o desafio era cada vez maior”, reconheceu Serrazina, cujas lentes de contacto motivaram o percalço seguinte.
“O olho direito ficou inflamado e, como as lentes de reserva estavam na mala que estava desaparecida, só tinha um ‘kit’ com algum líquido, que acabou. Tirei a lente e fiquei só com um olho operacional para usar o GPS. Durante o dia usava óculos de sol para tentar evitar a irritação, mas perdi-os num dos refúgios”, recordou.
Apesar de se sentir “bem fisicamente”, os obstáculos continuavam a surgir entre as “paisagens fabulosas” dos Alpes, onde esteve sempre acompanhado de Diogo Simão.
O obidense conta que, “a cerca de 250 quilómetros, numa das descidas, senti uma dor no estômago e caí. Continuei, passei numa base de vida, tentei recompor-me e avançámos. No refúgio seguinte, a 2.600 metros de altitude, dormimos e, quando acordei, desatei a vomitar descontroladamente. Disse ao Diogo para continuar e fiquei para trás. Ainda tentei acompanhar um grupo de franceses, mas estava com a vista baça e não via nada. Foi nessa altura que desisti”, referiu.
A 12 de Setembro, com 301 quilómetros percorridos e sem condições para continuar, Jorge Serrazina foi transportado para o Hospital de Valle d’Aosta, onde tratou do problema ocular, fez exames e ficou em observação. Medicado e sem dores, pernoitou no pavilhão de apoio à prova.
“Passei bem a noite, mas no dia seguinte tive dores horríveis na barriga e voltei para o hospital. Uma hora depois estava no bloco operatório, porque tinha uma rotura no duodeno. Tinha um buraco de três milímetros”, revelou o atleta, que ficou internado 10 dias.
De regresso a Portugal, com menos 10 quilos, Jorge Serrazina diz “estar bem, apesar de enfrentar uma recuperação de três meses”
O atleta de Óbidos prevê o seu regresso às competições, no Ultra Trilhos dos Abutres, em Janeiro de 2020. Até lá, admite, vai “repensar a pré-inscrição na Mega Race 1.001 quilómetros, a prova mais longa do mundo em linha, que se vai realizar em Setembro de 2020”.