Todos os dias acorda cedo. Não vive assim tão longe da escola, mas é longe o suficiente para ter que apanhar a carrinha escolar que faz uma ronda grande e demora a percorrer os quilómetros que separam Valongo do Porto. Marisa tem nove anos e é aluna da Escola Básica Augusto Lessa, no Porto.
Frequentou o que se chama a intervenção precoce, ainda antes dos três anos. A avó é a principal responsável pelo seu percurso escolar. Marisa é surda desde a nascença, mas é também uma das melhores alunas da turma. Não ouve, mas ouve? com estilo.
A EB Augusto Lessa é designada pelo Ministério da Educação como uma EREBAS, Escola de Referência para a Educação Bilingue de Alunos Surdos e recebe crianças de todo o distrito do Porto e Norte. Há alunos que vêm de Paços de Ferreira, Vila do Conde, Penafiel, alunos que acordam às seis da manhã para começar as aulas às nove.
Algumas das crianças chegam com meses de vida, referenciadas por médicos, centros de saúde e hospitais como possuindo determinado grau de surdez. Integram a equipa da Intervenção Precoce, que desde os primeiros meses e até aos três anos oferece sessões semanais com um terapeuta da fala e um formador de língua gestual portuguesa, sessões que são acompanhadas pelos pais ou familiares.
Ângela Santos, coordenadora da EB Augusto Lessa, traçou o bilhete de identidade do estabelecimento de ensino para este ano letivo: cinco crianças em intervenção precoce, 55 alunos do Pré-escolar, 180 alunos no 1º. Ciclo e cerca de 60 adultos a trabalhar no local, entre professores, terapeutas da fala, formadores e assistentes operacionais.
“É fundamental conseguirmos apanhar as crianças muito cedo, pois têm uma maior probabilidade de desenvolver a língua gestual de uma forma mais natural e mais eficaz”, explicou o professor Carlos Afonso que é o coordenador do Departamento de Educação Especial do Agrupamento de Escolas Eugénio de Andrade.
Sameiro Pereira é professora do 1.º Ciclo há 12 anos e tem tido alunos surdos integrados na sala de aula. “Temos que ter muito cuidado na forma de dar as aulas: falar de frente para os alunos conseguirem ver os lábios e gestos, ter cuidado com a posição em que eles estão virados para o quadro, a questão do vocabulário tem que ser muito trabalhada”, explicou.
As vantagens são múltiplas para ambos os lados: surdos e ouvintes. “As nossas crianças ouvintes também aprendem língua gestual, pois é uma forma de poderem comunicar umas com as outras”, refere Ângela Santos.
A professora Sameiro Pereira corrobora. “As crianças ouvintes reagem normalmente, com naturalidade, e gostam de aprender a língua gestual para comunicarem entre eles. Às vezes até a usam para copiar”, disse.
A colocação em turmas bilingue ou do ensino regular depende de diversos fatores, entre uma avaliação da escola e decisão dos pais, bem como da criança. A decisão é sempre individual e ponderada caso a caso.
“As crianças pelas suas características, começam elas próprias a construir-se em termos identitários, ou mais próximas dos surdos ou mais próximas dos ouvintes, consoante, muitas vezes, o défice auditivo”, reiterou o professor Carlos Afonso.
Isabel Neves é professora de ensino especial e trabalha com turmas bilingues, ou seja, turmas onde todos os alunos são surdos. As aulas são coadjuvadas a tempo inteiro por uma formadora de língua gestual portuguesa que é surda, portanto, nativa na língua gestual.
“A formadora reformula as minhas explicações e temas, tornando-os sistematicamente mais acessíveis às crianças. Eu trabalho os conteúdos normais curriculares, ou seja, eu falo, pois há várias crianças na sala que têm possibilidade de receber a mensagem oralmente e precisam de ser estimuladas, há outras que vão treinando a leitura de fala. Mas a base da aprendizagem deles é sempre a língua gestual, que deveria ser a língua materna, se a tivessem tido desde pequeninos”, explicou a professora.
As matérias curriculares sofrem adaptações para as turmas bilingue, demora mais tempo a transmitir e a apreender conceitos, mas as etapas vão-se fazendo, embora de forma mais lenta do que no ensino regular.
“Não basta dizer ‘mesa’, nos surdos tenho que ensinar que mesa é este objeto em concreto e, depois, generalizar a outras mesas, com outras formas, formatos e cores”, exemplificou Isabel Neves.
A docente sublinha a diferença “abismal entre os alunos que frequentaram a intervenção precoce e aqueles que não tiveram essa oportunidade. “As crianças que chegaram agora ao primeiro ciclo têm uma capacidade de desenvolvimento e comunicação que eu nunca tinha visto anteriormente, estamos a começar a sentir os frutos da intervenção precoce e tem sido extraordinário”, afirma.
Após terminarem o 4º ano, os alunos transitam para a EB 2,3 Eugénio de Andrade e o ensino é diferente. Passam a integrar turmas regulares com intérpretes nas salas. “Ao nível do 5.º ano e seguintes, os alunos deverão ter um domínio da língua gestual que lhes permite perceber o que o intérprete está a dizer, enquanto na fase anterior o objetivo é desenvolver precisamente competências nessa língua. A partir desta fase, deverão ser crianças autossuficientes nas duas línguas: língua gestual e língua portuguesa”, explicou o coordenador do ensino especial daquele agrupamento, Carlos Afonso.
Reportagem publicada parcialmente no número 02 do jornal Porto.