
Num recinto com lotação esgotada, Salman Rushdie enumerou, durante uma hora e meia, todas as razões para se ser pessimista no mundo contemporâneo. Falou de religião, terrorismo, Trump, Facebook e outras sombras negras a que alude metaforicamente no seu último livro. Mas com o humor de quem sobreviveu à pena capital.
“Vivemos numa era de trevas”, disse Salman Rushdie, na noite de sexta-feira, aos cerca de 500 espectadores que encheram a tenda dos concertos do festival literário Folio, em Óbidos. “Nasci pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial, e este é o pior tempo de que me lembro”.
Rushdie conversava com a jornalista Clara Ferreira Alves, numa sessão que esgotou desde há uma semana, obrigando a organização a alterar o local previsto no programa, da Tenda de Autores para esta, com o dobro da lotação.
A escolha revelou-se acertada, porque o clima foi mais de espectáculo do que de palestra. O escritor britânico de origem indiana, conhecido mundialmente por ter sido condenado à morte pelo ayatolah Khomeini, do Irão, passou a hora e meia da sessão desfiando ideias pessimistas, numa conversa, porém, sempre viva e bem-humorada. Um pouco à maneira dos jinn, os seres mágicos da mitologia árabe que Rushdie fez protagonistas do seu último romance e a quem parece ter emprestado um pouco do seu próprio estilo.
O livro, Dois Anos, Oito Meses e Vinte e Oito Noites, uma espécie de paródia actual das Mil e Uma Noites (editado em Portugal pela D. Quixote), conta a história de um jardineiro cujos pés começaram a levitar a cerca de um centímetro do chão. Isto séculos depois de uma princesa jinn se ter apaixonado por um mortal, de quem teve muitos filhos. É uma alegoria satírica, fantástica, que não deixa ainda assim de pretender retratar o mundo de hoje, onde todas as regras e leis parecem estar subvertidas.
“Levitar a um centímetro do solo é desafiar a gravidade, tanto quanto levitar a quilómetros de altitude. Mas é mais engraçado. E causa muitos problemas. Imagine o que é querer conduzir um carro, e o pé ficar um centímetro afastado do acelerador. Ou querer ir à casa de banho e ficar sentada a um centímetro da sanita…”
Toda a conversa sobre o livro é tão louca quanto o próprio livro – “louco demais”? Pergunta Clara. “Não existe essa coisa de louco demais”, é a resposta –, mas permite falar de todos os temas do mundo contemporâneo, porque é disso que o livro trata. Segundo um método que é a própria versão rushdiana do realismo mágico, e que ele explica assim: “Tudo tem de ser verosímil ao nível das personagens. A forma como elas se relacionam entre si tem de ser realista. E os lugares também têm de ser descritos de forma verosímil. Se obedecermos a essas regras, as pessoas acreditam em tudo”.
O segredo, portanto, é descrever coisas fantásticas com preocupações realistas. Por exemplo um tapete voador. “É de tecido, mole. Por isso deve ser difícil uma pessoa equilibrar-se em cima dele, quando vai a voar. Além disso, deve estar frio, quando se ganha altitude. No realismo mágico, é preciso levar estas coisas a sério.”
Foi assim, sempre a falar do livro, de jinn e pessoas que levitam, que a conversa lá foi viajando pelos grandes temas do nosso mundo. A importância da religião foi um deles. “Eu sou um soixante huitard”, disse Rushdie, que era estudante no Reino Unido quando rebentaram os movimentos contestatários, o feminismo, o rock and roll. “Usávamos roupas loucas e drogas estúpidas, mas havia a contestação à guerra do Vietname, o movimento das mulheres, dos direitos humanos. O mundo moderno nasceu naquela altura. Do que não se falava de todo era de religião”. Era imprevisível a importância que ela viria a assumir no mundo meio século mais tarde. “Eu não gosto de falar de religião, mas é como se ela estivesse sentada no meio da sala. Não se pode estar na sala e fingir ignorá-la.”
“É como um elefante na sala”, disse a entrevistadora, colando a ideia a uma expressão portuguesa. “Muito maior”, corrigiu Rushdie. “Comparada com a religião, o elefante parece um rato.”
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