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No Curso das Águas

3 h | 8 locais
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3 hDuração

Ao visitante chegado a Óbidos parecerá peculiar a hipótese de participar num circuito No curso das Águas. Os rios são pequenos cursos de água, já não avistamos a lagoa e a conotação medieval da vila não preenche o imaginário da simbiose arte/água que se desenvolveu nas épocas subsequentes, Renascimento e Barroco.
No entanto, para entendermos a história de Óbidos precisamos de compreender a importância da água nas suas múltiplas dimensões, na forma como o homem a procurou dominar e na forma como a natureza evoluiu determinando mudanças na percepção humana do espaço. A história de Óbidos demonstra três dimensões dessa percepção: águas livres, cativas e sagradas.

As águas livres demonstraram ao homem que, apesar do seu engenho, o determinismo geográfico pode forçá-lo a mudar a sua forma de vida e não apenas o inverso. A Lagoa de Óbidos atesta precisamente este conceito, as suas diferentes margens levaram o homem a procurar novas localizações de instalação comunitária. O recuo histórico das margens ajudou ao abandono da cidade romana de Eburobrittium (séc. V) e do núcleo populacional do Mocharro (actual encosta fronteira à Várzea da Rainha no arrabalde da vila), por volta do séc. XVI, isto referindo apenas algumas das implicações directas. O equilíbrio simultaneamente frágil e rico deste ecossistema continua a possuir uma considerável importância económica, apesar de distante da que possuiu noutros períodos históricos, quando a lagoa e os rios afluentes, permitiam a pesca e, nos terrenos circundantes, a caça.
Facilmente compreendemos o impacto que o frequente assoreamento provocava, multiplicando-se as referências históricas aos trabalhos de regularização da entrada da Lagoa. D. Afonso V, nas cortes de Évora de 1460 determinou que o concelho de Óbidos pudesse, com autoridade própria, convocar os habitantes da Atouguia e Cadaval para participarem nos trabalhos de abertura da Lagoa. Seria mesmo tradição as principais figuras da vila assistirem aos trabalhos e os sinos tocarem desde o início dos trabalhos até à abertura da língua de terra que permitiria que o oceano e a lagoa se complementassem.
A intervenção do homem nestas águas livres estendeu-se aos rios que correm no sopé de Óbidos. Em 1650, por exemplo, é dado um novo curso ao rio Real passando a atravessar a Várzea da Rainha em linha recta até à Lagoa, deixando de existir o Rio do Meio (Memórias Históricas…, pp. 74-75). Sem o podermos garantir de forma incontestável, acreditamos que estas alterações na hidrografia local teriam como objectivo o domínio dos solos para aproveitamento agrícola, um pouco à semelhança do que fizeram os monges de Alcobaça na várzea do Valado dos Frades, antiga lagoa da Pederneira.

A distinção que avançamos, classificando diferentes dimensões da forma como a água tem sido utilizada, não deve ser encarada como uma compartimentação estanque, mas como um processo contínuo e integrado. Assim sendo, estabelecemos a ponte para outro conceito, o de águas cativas ou humanizadas, reflexo da intervenção do homem sobre o precioso elemento, controlando-o e utilizando-o como suporte à vida. Em ligação com a evolução da ocupação espacial da vila surgem as infra-estruturas de abastecimento aproveitando nascentes, criando fontes, aquedutos e chafarizes.
As mudanças nas relações entre o poder e a população, nos cuidados de higiene, na saúde pública são exemplificados, com alguma facilidade, quando analisados comparativamente com a cronologia dessas infra-estruturas. Exemplificando:
– A forte implantação do termalismo na cultura romana ou romanizada é demonstrada pela descoberta arqueológica das termas de Eburobrittium;
– A frugalidade medieval no uso da água, de frágeis registos em termos históricos, é representada pela cisterna na torre D. Fernando;
– O Renascimento foi marcado pela preocupação de Senhores ou Senhoras com uma população carenciada, apoiando a construção de aquedutos e chafarizes. Óbidos, no séc. XVI, exemplifica esta relação num interessante contrato entre a população e a rainha D. Catarina de Áustria, em que, genericamente, ambas as partes acordam na construção de um aqueduto que abastecesse a vila com água da nascente da Usseira compensando a Rainha com a fértil várzea, cujo nome passará a ostentar o seu título. O aqueduto com uma extensão de seis quilómetros está repartido em três troços: um primeiro com três quilómetros de canalização subterrânea da nascente na Usseira até ao Vale dos Arcos; um segundo, em troço aéreo, cerca de dois quilómetros e meio, até à Porta da Vila; e o terceiro por canalização subterrânea até ao Chafariz na praça de Santa Maria. A relevância de uma obra desta natureza para as populações da época é difícil de transmitir num circuito ou num texto, no entanto assumimos essa tarefa apresentando apenas três argumentos:
– Até então o abastecimento era efectuado em poços privados e num poço público, a existência deste último é testemunhada na toponímia local (Câmara TB, p. 63). Em conjunturas de seca, as fragilidades deste incipiente sistema de abastecimento seriam sentidas com acuidade, obrigando os locais a procurarem água na Fonte do Jardim, a dois quilómetros de distância, vendida a um preço alto aos moradores, para além da insegurança para as mulheres que a transportavam;
– O aqueduto esteve operacional nos quatro séculos seguintes. Foram vários os reis e rainhas que ordenaram obras de recuperação, como D. Filipe II ou D. Maria I. Ainda no século XIX a Câmara Municipal de Óbidos lançava posturas de combate aos abusos de proprietários de terrenos junto ao aqueduto proibindo os desvios das suas águas;
– Apesar dos investimentos efectuados, neste domínio em Portugal no século XVI, com os aquedutos de Évora ou Elvas, a capital do reino era servida por um chafariz, o que leva Francisco d’Holanda a ironizar sobre a pretensão de Lisboa ser a capital do Mundo, quando não tinha água para dar à gente do Mundo.
No que concerne ao abastecimento no interior da muralha e arrabalde, para além do mencionado Chafariz da praça de Santa Maria, a vila dispunha (e ainda dispõe) da Fonte da Biquinha, cuja tradição aponta a origem para a época de D. Afonso Henriques, e o Chafariz de D. Maria mandado construir pela Rainha D. Maria, em 1792, aquando das obras de restauro do aqueduto e substituição da canalização da Rua Direita. A construção deste Chafariz enquadra-se num programa Barroco que fazia da água uma forma de afirmação do poder, nesse contexto entende-se a epígrafe aí colocada e que diz o seguinte: Maria Primeira. Utilidade Pública. 1792.

Depois da dimensão utilitária, mas vital, das águas cativas, e da afirmação da natureza das águas livres, falta-nos referir a dimensão simbólica e sagrada. Óbidos apresenta exemplos, diversos no conteúdo e na forma, mas que reflectem a importância intemporal da água, manifesta na iconografia da igreja cristã e na tradição oral através de lendas e contos.
Começando por este último ponto, apresentamos alguns exemplos de lendas e contos, quase todos ligados à Lagoa, como o caso das lendas atribuídas à etimologia da Poça da Cativa. Refere a tradição que ali teria existido uma forja no tempo dos mouros e que, quando os cristãos conquistaram este território encontraram junto a um charco uma moira que prenderam na vila. Também os mussaranhos ou homens marinhos fazem parte do imaginário local, estando inclusivamente referenciado o relato de um pescador na obra Memórias Históricas, uma súmula da História Local escrita na primeira metade do século XIX.
A iconografia cristã e a água estão representadas de diferentes maneiras em igrejas e capelas de Óbidos. São João Baptista, o mais importante santo do hagiógrafo cristão relacionado com a água, devido ao facto de ter baptizado Jesus Cristo, está profundamente relacionado com Óbidos. Foi orago da igreja e do núcleo populacional moçárabe do Mocharro, no arrabalde da vila. Esta comunidade implantada na encosta ocidental, no exterior das muralhas, provavelmente devido à sua ligação à lagoa, foi obrigada a abandoná-la com o assoreamento lagunar. O abandono progressivo desse núcleo, durante o século XVI, teve o seu epíteto em 1636 com a transferência da paróquia de S. João do Mocharro para a capela de São Vicente, que passa a ter como invocação São João Baptista. Curioso é o facto do culto a São Vicente, de forte presença no período medieval em território nacional, estar também ligado à água, mais especificamente ao mar. A transferência das relíquias deste santo de Sagres para Lisboa ordenada por D. Afonso Henriques foi efectuada por barco com dois corvos que acompanharam as relíquias. O barco e os corvos ficam desde então como os atributos de São Vicente. Em Óbidos a capela de São Vicente seria parte de um complexo de assistência aos gafos, fundado no século XIV por iniciativa da Rainha D. Isabel.
O século XVI deixa-nos dois monumentos interessantes de referir neste contexto: a capela de Santa Iria e o baptistério de São Pedro.
Santa Iria é a santa invocada para protecção das águas, pois, depois de morta, foi deitada ao rio Nabão que a levou até desaguar no Tejo. As águas até então tormentosas e geradoras de grandes cheias acalmaram-se após o contacto com o corpo da santa. A capela de Santa Iria, segundo a tradição, terá sido construída por pedreiros da obra do aqueduto em cumprimento de uma promessa. Se a inauguração do aqueduto acontecesse sem impedimentos ou roturas, atestando a construção sem defeitos, a capela seria construída. Apesar da inauguração ter corrido da forma desejada, não podemos afirmar com clareza que terá nascido nesta altura o culto a Santa Iria. O facto da imagem de Santa Iria, desta capela, ser do século XV enquanto o edifício é do século posterior, deixa no ar a hipótese de ter existido um templo primitivo no mesmo local (Gorjão S, 2000, p. 87-88).
Particularmente interessante é o baptistério da igreja paroquial de S. Pedro. Num templo marcado pelo ruinoso efeito do terramoto de 1755 sobreviveram três elementos: o portal principal, a belíssima escada helicoidal da torre sineira e o baptistério, na entrada do templo do lado do Evangelho. O baptistério com a pia baptismal é coberto por uma cúpula singela, que confere a dignidade necessária ao momento do baptismo, o momento da purificação do pecado original.
Para terminar voltamos a referenciar o século XVIII, desta vez no período pré-terramoto, para referir o culto ao Senhor Jesus da Pedra. Envolto em contextos lendários a imagem do Senhor Jesus da Pedra, de acordo com a lenda mais firmemente estabelecida, refere que um lavrador escutou uma voz entre um silvado dizendo que não iria chover enquanto não se venerasse condignamente a imagem (Gorjão S, 1998, p. 30). A cruz foi encontrada entre as ruínas de uma capela, camuflada pela vegetação, gerando um fenómeno que levou à organização de uma procissão que partiu da Porta de Nossa Senhora da Graça até ao local do actual Santuário do Senhor Jesus da Pedra . Depois das orações regressaram em procissão até à actual Igreja de Nossa Senhora do Carmo (antiga São João do Mocharro) e pouco tempo depois choveu abundantemente permitindo um bom ano de colheitas.
A construção do imponente santuário, pelo desenho do capitão Rodrigo Franco e acção mecenática do Patriarca de Lisboa D. Tomás de Almeida e do rei D. João V, reflecte a importância assumida pelo Senhor Jesus da Pedra, destino de peregrinações frequentes desde então.
O Santuário, em virtude da acção de D. João V, estabelece uma interessante relação com outro local onde acorria um elevado número de pessoas, que vinham a “águas” desde os finais do século XV, quando D. Leonor funda o Hospital Termal das Caldas da Rainha. Situado no interior do termo de Óbidos, este hospital conquista o seu próprio espaço administrativo em virtude de um acelerado desenvolvimento e do amparo régio que lhe foi concedido. Apesar do concelho de Óbidos já na altura possuir outras nascentes termais, a preponderância das Caldas da Rainha assumiu contornos de inevitabilidade levando à inconsequência de projectos termalistas que eram defendidos na vereação da Câmara Municipal de Óbidos, ainda nos finais do século XIX.

Concluindo, podemos afirmar que é caudalosa e repleta de potencialidades de investigação a relação da Vila de Óbidos com o elemento água. Do seu posicionamento geoestratégico junto a uma lagoa até ao aparecimento do primeiro Hospital Termal do Mundo, bem no interior do seu termo, fica a História do engenho e capacidade de adaptação das populações e da relação com Rainhas, gerando aquedutos e templos onde as propriedades da água eram aproveitadas e, de alguma forma, veneradas.

Pontos de Interesse
Eburobrittium
Em 1994, as obras para a construção das estradas IC1 e IP6, na freguesia de Gaeiras em Óbidos, próximo do Santuário do Senhor Jesus da Pedra, deixaram a descoberto vestígios arqueológicos do período da invasão romana da península Ibérica. No ano seguinte, em...
Chafariz D. Maria
Este chafariz maneirista situa-se na Praça de Santa Maria em frente da Igreja Matriz da vila de Óbidos. Sendo construído em 1575 por ordem da rainha D. Catarina de Áustria, esposa de D. João III, destinava-se a trazer para a vila a água de Usseira, num...
Chafariz da Biquinha
Chafariz de espaldar, provavelmente construído em 1856 no local onde existira uma fonte do tempo de Dom Afonso Henriques. Destaca-se um pequeno bebedouro adossado e as armas reais no espaldar.
Chafariz do Senhor Jesus da Pedra
Envolto em contextos lendários, a imagem do Senhor Jesus da Pedra, de acordo com a lenda mais firmemente estabelecida, refere que um lavrador escutou uma voz entre um silvado dizendo que não iria chover enquanto não se venerasse condignamente a imagem...
Chafariz Real da Praça de Santa Maria
Este chafariz maneirista situa-se na Praça de Santa Maria em frente da Igreja Matriz da vila de Óbidos. Sendo construído em 1575 por ordem da rainha D. Catarina de Áustria, esposa de D. João III, destinava-se a trazer para a vila a água de Usseira, num...
Ermida de Santa Iria
É um pequeno templo situado junto ao velho Aqueduto, mandado construir por D. Catarina em 1573 tendo sido ampliado por Filipe III e parcialmente destruído pelo terramoto de 1755. Nela existe uma pequena imagem do orago, escultura em pedra, quatrocentista. Em...
Igreja de São João Baptista
Onde hoje se encontra o Museu Paroquial foi na Idade Média um hospital dos gafos (leprosos). Até meados do século XVII denominava-se Capela de São Vicente e terá sido criada em 1309 pela Rainha Santa Isabel.
Baptistério da Igreja de S. Pedro
O baptistério da igreja paroquial de S. Pedro. Num templo marcado pelo ruinoso efeito do terramoto de 1755 sobreviveram três elementos: o portal principal, a belíssima escada helicoidal da torre sineira e o baptistério, na entrada do templo do lado do...

A Pintura Antiga na Vila de Óbidos

A “fortaleza natural da arte” como alguns autores de séculos anteriores designaram Óbidos deve muito desse epíteto à riquíssima colecção de pintura que se concentra no interior das muralhas, mas também em algumas freguesias circundantes. Pequenas capelas, igrejas e...

Azulejos em Óbidos

Em Portugal o azulejo é uma arte profundamente enraizada, transversal à sociedade portuguesa. Não raras vezes, essa mesma sociedade assume a maternidade, quase militante, destes pequenos quadrados cerâmicos que revestem os mais variados espaços, até mesmo os mais...

A Herança Medieval

A História de Óbidos carece de informação fidedigna quanto às suas origens, à semelhança do que acontece noutros locais. Apesar de algumas referências em documentos de cronologias muito posteriores, apenas as descobertas arqueológicas demonstraram factualmente várias...