Ao visitante chegado a Óbidos parecerá peculiar a hipótese de participar num circuito No curso das Águas. Os rios são pequenos cursos de água, já não avistamos a lagoa e a conotação medieval da vila não preenche o imaginário da simbiose arte/água que se desenvolveu nas épocas subsequentes, Renascimento e Barroco.
No entanto, para entendermos a história de Óbidos precisamos de compreender a importância da água nas suas múltiplas dimensões, na forma como o homem a procurou dominar e na forma como a natureza evoluiu determinando mudanças na percepção humana do espaço. A história de Óbidos demonstra três dimensões dessa percepção: águas livres, cativas e sagradas.
As águas livres demonstraram ao homem que, apesar do seu engenho, o determinismo geográfico pode forçá-lo a mudar a sua forma de vida e não apenas o inverso. A Lagoa de Óbidos atesta precisamente este conceito, as suas diferentes margens levaram o homem a procurar novas localizações de instalação comunitária. O recuo histórico das margens ajudou ao abandono da cidade romana de Eburobrittium (séc. V) e do núcleo populacional do Mocharro (actual encosta fronteira à Várzea da Rainha no arrabalde da vila), por volta do séc. XVI, isto referindo apenas algumas das implicações directas. O equilíbrio simultaneamente frágil e rico deste ecossistema continua a possuir uma considerável importância económica, apesar de distante da que possuiu noutros períodos históricos, quando a lagoa e os rios afluentes, permitiam a pesca e, nos terrenos circundantes, a caça.
Facilmente compreendemos o impacto que o frequente assoreamento provocava, multiplicando-se as referências históricas aos trabalhos de regularização da entrada da Lagoa. D. Afonso V, nas cortes de Évora de 1460 determinou que o concelho de Óbidos pudesse, com autoridade própria, convocar os habitantes da Atouguia e Cadaval para participarem nos trabalhos de abertura da Lagoa. Seria mesmo tradição as principais figuras da vila assistirem aos trabalhos e os sinos tocarem desde o início dos trabalhos até à abertura da língua de terra que permitiria que o oceano e a lagoa se complementassem.
A intervenção do homem nestas águas livres estendeu-se aos rios que correm no sopé de Óbidos. Em 1650, por exemplo, é dado um novo curso ao rio Real passando a atravessar a Várzea da Rainha em linha recta até à Lagoa, deixando de existir o Rio do Meio (Memórias Históricas…, pp. 74-75). Sem o podermos garantir de forma incontestável, acreditamos que estas alterações na hidrografia local teriam como objectivo o domínio dos solos para aproveitamento agrícola, um pouco à semelhança do que fizeram os monges de Alcobaça na várzea do Valado dos Frades, antiga lagoa da Pederneira.
A distinção que avançamos, classificando diferentes dimensões da forma como a água tem sido utilizada, não deve ser encarada como uma compartimentação estanque, mas como um processo contínuo e integrado. Assim sendo, estabelecemos a ponte para outro conceito, o de águas cativas ou humanizadas, reflexo da intervenção do homem sobre o precioso elemento, controlando-o e utilizando-o como suporte à vida. Em ligação com a evolução da ocupação espacial da vila surgem as infra-estruturas de abastecimento aproveitando nascentes, criando fontes, aquedutos e chafarizes.
As mudanças nas relações entre o poder e a população, nos cuidados de higiene, na saúde pública são exemplificados, com alguma facilidade, quando analisados comparativamente com a cronologia dessas infra-estruturas. Exemplificando:
– A forte implantação do termalismo na cultura romana ou romanizada é demonstrada pela descoberta arqueológica das termas de Eburobrittium;
– A frugalidade medieval no uso da água, de frágeis registos em termos históricos, é representada pela cisterna na torre D. Fernando;
– O Renascimento foi marcado pela preocupação de Senhores ou Senhoras com uma população carenciada, apoiando a construção de aquedutos e chafarizes. Óbidos, no séc. XVI, exemplifica esta relação num interessante contrato entre a população e a rainha D. Catarina de Áustria, em que, genericamente, ambas as partes acordam na construção de um aqueduto que abastecesse a vila com água da nascente da Usseira compensando a Rainha com a fértil várzea, cujo nome passará a ostentar o seu título. O aqueduto com uma extensão de seis quilómetros está repartido em três troços: um primeiro com três quilómetros de canalização subterrânea da nascente na Usseira até ao Vale dos Arcos; um segundo, em troço aéreo, cerca de dois quilómetros e meio, até à Porta da Vila; e o terceiro por canalização subterrânea até ao Chafariz na praça de Santa Maria. A relevância de uma obra desta natureza para as populações da época é difícil de transmitir num circuito ou num texto, no entanto assumimos essa tarefa apresentando apenas três argumentos:
– Até então o abastecimento era efectuado em poços privados e num poço público, a existência deste último é testemunhada na toponímia local (Câmara TB, p. 63). Em conjunturas de seca, as fragilidades deste incipiente sistema de abastecimento seriam sentidas com acuidade, obrigando os locais a procurarem água na Fonte do Jardim, a dois quilómetros de distância, vendida a um preço alto aos moradores, para além da insegurança para as mulheres que a transportavam;
– O aqueduto esteve operacional nos quatro séculos seguintes. Foram vários os reis e rainhas que ordenaram obras de recuperação, como D. Filipe II ou D. Maria I. Ainda no século XIX a Câmara Municipal de Óbidos lançava posturas de combate aos abusos de proprietários de terrenos junto ao aqueduto proibindo os desvios das suas águas;
– Apesar dos investimentos efectuados, neste domínio em Portugal no século XVI, com os aquedutos de Évora ou Elvas, a capital do reino era servida por um chafariz, o que leva Francisco d’Holanda a ironizar sobre a pretensão de Lisboa ser a capital do Mundo, quando não tinha água para dar à gente do Mundo.
No que concerne ao abastecimento no interior da muralha e arrabalde, para além do mencionado Chafariz da praça de Santa Maria, a vila dispunha (e ainda dispõe) da Fonte da Biquinha, cuja tradição aponta a origem para a época de D. Afonso Henriques, e o Chafariz de D. Maria mandado construir pela Rainha D. Maria, em 1792, aquando das obras de restauro do aqueduto e substituição da canalização da Rua Direita. A construção deste Chafariz enquadra-se num programa Barroco que fazia da água uma forma de afirmação do poder, nesse contexto entende-se a epígrafe aí colocada e que diz o seguinte: Maria Primeira. Utilidade Pública. 1792.
Depois da dimensão utilitária, mas vital, das águas cativas, e da afirmação da natureza das águas livres, falta-nos referir a dimensão simbólica e sagrada. Óbidos apresenta exemplos, diversos no conteúdo e na forma, mas que reflectem a importância intemporal da água, manifesta na iconografia da igreja cristã e na tradição oral através de lendas e contos.
Começando por este último ponto, apresentamos alguns exemplos de lendas e contos, quase todos ligados à Lagoa, como o caso das lendas atribuídas à etimologia da Poça da Cativa. Refere a tradição que ali teria existido uma forja no tempo dos mouros e que, quando os cristãos conquistaram este território encontraram junto a um charco uma moira que prenderam na vila. Também os mussaranhos ou homens marinhos fazem parte do imaginário local, estando inclusivamente referenciado o relato de um pescador na obra Memórias Históricas, uma súmula da História Local escrita na primeira metade do século XIX.
A iconografia cristã e a água estão representadas de diferentes maneiras em igrejas e capelas de Óbidos. São João Baptista, o mais importante santo do hagiógrafo cristão relacionado com a água, devido ao facto de ter baptizado Jesus Cristo, está profundamente relacionado com Óbidos. Foi orago da igreja e do núcleo populacional moçárabe do Mocharro, no arrabalde da vila. Esta comunidade implantada na encosta ocidental, no exterior das muralhas, provavelmente devido à sua ligação à lagoa, foi obrigada a abandoná-la com o assoreamento lagunar. O abandono progressivo desse núcleo, durante o século XVI, teve o seu epíteto em 1636 com a transferência da paróquia de S. João do Mocharro para a capela de São Vicente, que passa a ter como invocação São João Baptista. Curioso é o facto do culto a São Vicente, de forte presença no período medieval em território nacional, estar também ligado à água, mais especificamente ao mar. A transferência das relíquias deste santo de Sagres para Lisboa ordenada por D. Afonso Henriques foi efectuada por barco com dois corvos que acompanharam as relíquias. O barco e os corvos ficam desde então como os atributos de São Vicente. Em Óbidos a capela de São Vicente seria parte de um complexo de assistência aos gafos, fundado no século XIV por iniciativa da Rainha D. Isabel.
O século XVI deixa-nos dois monumentos interessantes de referir neste contexto: a capela de Santa Iria e o baptistério de São Pedro.
Santa Iria é a santa invocada para protecção das águas, pois, depois de morta, foi deitada ao rio Nabão que a levou até desaguar no Tejo. As águas até então tormentosas e geradoras de grandes cheias acalmaram-se após o contacto com o corpo da santa. A capela de Santa Iria, segundo a tradição, terá sido construída por pedreiros da obra do aqueduto em cumprimento de uma promessa. Se a inauguração do aqueduto acontecesse sem impedimentos ou roturas, atestando a construção sem defeitos, a capela seria construída. Apesar da inauguração ter corrido da forma desejada, não podemos afirmar com clareza que terá nascido nesta altura o culto a Santa Iria. O facto da imagem de Santa Iria, desta capela, ser do século XV enquanto o edifício é do século posterior, deixa no ar a hipótese de ter existido um templo primitivo no mesmo local (Gorjão S, 2000, p. 87-88).
Particularmente interessante é o baptistério da igreja paroquial de S. Pedro. Num templo marcado pelo ruinoso efeito do terramoto de 1755 sobreviveram três elementos: o portal principal, a belíssima escada helicoidal da torre sineira e o baptistério, na entrada do templo do lado do Evangelho. O baptistério com a pia baptismal é coberto por uma cúpula singela, que confere a dignidade necessária ao momento do baptismo, o momento da purificação do pecado original.
Para terminar voltamos a referenciar o século XVIII, desta vez no período pré-terramoto, para referir o culto ao Senhor Jesus da Pedra. Envolto em contextos lendários a imagem do Senhor Jesus da Pedra, de acordo com a lenda mais firmemente estabelecida, refere que um lavrador escutou uma voz entre um silvado dizendo que não iria chover enquanto não se venerasse condignamente a imagem (Gorjão S, 1998, p. 30). A cruz foi encontrada entre as ruínas de uma capela, camuflada pela vegetação, gerando um fenómeno que levou à organização de uma procissão que partiu da Porta de Nossa Senhora da Graça até ao local do actual Santuário do Senhor Jesus da Pedra . Depois das orações regressaram em procissão até à actual Igreja de Nossa Senhora do Carmo (antiga São João do Mocharro) e pouco tempo depois choveu abundantemente permitindo um bom ano de colheitas.
A construção do imponente santuário, pelo desenho do capitão Rodrigo Franco e acção mecenática do Patriarca de Lisboa D. Tomás de Almeida e do rei D. João V, reflecte a importância assumida pelo Senhor Jesus da Pedra, destino de peregrinações frequentes desde então.
O Santuário, em virtude da acção de D. João V, estabelece uma interessante relação com outro local onde acorria um elevado número de pessoas, que vinham a “águas” desde os finais do século XV, quando D. Leonor funda o Hospital Termal das Caldas da Rainha. Situado no interior do termo de Óbidos, este hospital conquista o seu próprio espaço administrativo em virtude de um acelerado desenvolvimento e do amparo régio que lhe foi concedido. Apesar do concelho de Óbidos já na altura possuir outras nascentes termais, a preponderância das Caldas da Rainha assumiu contornos de inevitabilidade levando à inconsequência de projectos termalistas que eram defendidos na vereação da Câmara Municipal de Óbidos, ainda nos finais do século XIX.
Concluindo, podemos afirmar que é caudalosa e repleta de potencialidades de investigação a relação da Vila de Óbidos com o elemento água. Do seu posicionamento geoestratégico junto a uma lagoa até ao aparecimento do primeiro Hospital Termal do Mundo, bem no interior do seu termo, fica a História do engenho e capacidade de adaptação das populações e da relação com Rainhas, gerando aquedutos e templos onde as propriedades da água eram aproveitadas e, de alguma forma, veneradas.